Dia do Funk: da margem pro mundo

Se tem um som que bate no peito do Brasil, esse som é o funk. No dia 12 de julho, celebramos não só um gênero musical, mas uma cultura inteira que resiste, cria, transforma e atravessa fronteiras, mesmo que tenham tentado calar.

A história do funk no Brasil começa lá nos anos 1970, com os famosos bailes do Pesadão, no subúrbio do Rio de Janeiro. Inspirados pelo soul e pelo funk norte-americano de James Brown e cia, esses bailes aconteciam em clubes e quadras, onde a juventude preta e periférica encontrava espaço pra dançar, paquerar e ser feliz. Era mais que festa, era respiro, era liberdade.

Black Rio nos Anos 70 | Foto: CPDoc JB

Nos anos 1980, os bailes se espalham e começam a ganhar o coração das favelas. Já nos anos 1990, o funk carioca nasce com batidas mais aceleradas, letras do cotidiano e uma estética própria que não pedia licença pra existir. A Furacão 2000 foi um divisor de águas, levando o ritmo pro rádio, pra TV, pras casas de todo mundo. E ainda que os ricos dançassem escondido, o funk já era cultura popular consolidada.

Baile funk do Rio (RJ), nos anos 80
Baile funk no Clube Canto do Rio (RJ), nos anos 80

Nos anos 2000, o funk brasileiro viveu uma explosão. Foi a era dos bailes de corredor, dos DVDs da Furacão 2000, da MTV transmitindo Bonde do Tigrão, MC Marcinho e Cidinho & Doca. O funk invadiu as rádios populares e, pela primeira vez, bateu na grande mídia com força. Era o tempo do “vai tomar, vai tomar”, dos paredões de som nos carros tunados, dos celulares com infravermelho passando toque de funk entre amigos. Os videoclipes com mulheres dançando em piscinas de plástico, os bonés Lacoste e os óculos espelhados viraram símbolos da estética funkeira da época. E enquanto isso, nas comunidades, surgia o funk proibidão, com letras que falavam das realidades das favelas sem censura. Foi também nessa época que o funk começou a ser criminalizado de forma mais sistemática, mas também foi quando ficou impossível ignorar sua força como movimento cultural. O Brasil já não dançava sem funk, e isso era só o começo.

CCIP DE PILARES 17 DE JUNHO DE 2012 325
Baile funk lotado do Castelo das Pedras Foto: Arquivo / 12/07/2002

Mesmo sendo um dos movimentos culturais mais potentes do país, o funk sempre foi perseguido. A repressão ao gênero não é só sobre música, é sobre controle social. Desde os anos 90, com a ascensão dos bailes funks nas periferias, autoridades passaram a associar os eventos à criminalidade, marginalizando os jovens que participavam. Muitos bailes foram proibidos, fechados pela polícia com violência, sem qualquer diálogo com a comunidade.

Nos anos 2000, com o crescimento do proibidão, essa perseguição se intensificou. DJs foram presos por “apologia ao crime”, bailes foram invadidos e interrompidos, e o funk virou alvo de projetos de lei que tentavam criminalizar o gênero como um todo. Enquanto isso, outros estilos musicais que também falavam sobre sexo, drogas ou ostentação não sofriam o mesmo peso da censura. A diferença? O lugar de onde o funk fala, das favelas, das vielas, das ruas.

A repressão ao funk é, no fundo, uma tentativa de silenciar a juventude preta e periférica. Mas o funk resistiu. Com batida, com dança, com rima. Foi pros aplicativos, pras redes sociais, pras festas clandestinas, e ganhou o mundo. O que tentaram calar virou trilha sonora de milhões. Funk é liberdade, e liberdade incomoda quem lucra com o silêncio dos outros.

Baile funk lotado do Castelo das Pedras Foto: Arquivo / 12/07/2002
Protesto em Paraisópolis após a morte de 9 pessoas no último domingo Foto Daniel ArroyoPonte Jornalismo

O funk é mais do que música, é resistência. Nascido nas favelas, ele se construiu como um movimento coletivo, onde cada batida, dança, rima e visual é uma forma de expressão política e afetiva. Mesmo enfrentando censura, repressão policial e preconceito da elite, o funk sobreviveu, se reinventou e se espalhou.

Artistas que vieram abrindo portas como Anitta, um nome que foi decisivo pra internacionalização do funk brasileiro, com hits em várias línguas, em 2023, fez história no palco do Coachella, levando o funk com bailarinas da favela, bandeira do Brasil e beats de DJ Gabriel do Borel. No show, teve tamborzão, teve sample de “Movimento da Sanfoninha” e um público gringo inteiro dançando funk sem entender a letra, mas sentindo o ritmo. Além disso, colaborou com nomes como Madonna, J Balvin, Major Lazer e Diplo, sempre mantendo o funk como base sonora ou referência estética. Ludmilla se tornou a primeira artista negra da América Latina com 1 bilhão de streams no Spotify, levando o funk pro mundo com autenticidade. MC Fioti estourou com “Bum Bum Tam Tam”, que virou hit até em hospitais da Europa. Kevin O Chris fez feat com Drake e levou o 150 BPM pras pistas internacionais. Pedro Sampaio emplaca produções dançantes que tocam fora do Brasil. Dennis DJ lota shows na gringa com sua energia de baile funk em formato festival. Rennan da Penha, mesmo perseguido aqui, é celebrado lá fora como arquiteto do funk moderno.

Ente vários outros nomes que mostram que o som da quebrada não só resistiu, como conquistou o planeta.

Artistas brasileiros do funk mais ouvidos internacionalmente

Nos últimos anos, o funk brasileiro deixou de ser “só da quebrada” e passou a ser trilha sonora do mundo. De favela pra gringa, o ritmo virou influência direta pra alguns dos maiores nomes da música internacional. Só que esse movimento também levanta reflexões: é bonito ver a batida das favelas rodando o globo, mas é essencial que a quebrada ganhe com isso, e não fique só assistindo do “barranco”.

A própria Beyoncé já apareceu dançando “Lelek Lek” e usando funk em seus ensaios, teve coreografia com batida de 150 BPM viralizando entre fãs brasileiros, e a Queen B não escondeu a inspiração agora incorporando funk na sua nova turnê. Rihanna, por sua vez, também usou o groove das nossas batidas em desfiles da Savage x Fenty, onde o corpo, a dança e a batida conversavam direto com a estética do baile, além de apresentar um remix com groove de funk carioca durante o show de intervalo do Super Bowl da NFL em 2023.

Bruno Mars foi além, em 2017, lançou um remix de “Versace on the Floor” com David Guetta que tem batidas e elementos que lembram o funk e na sua última vinda ao Brasil lançou um remix de funk em homenagem ao país em sua turnê.

E olha que não parou por aí, Drake, Rosalía, J Balvin, Karol G, Diplo, Skrillex, todos já pegaram um pouco da essência do funk, seja em samples, colagens, collabs ou no próprio flow.

Esses momentos mostram o quanto o funk é poderoso, moderno, dançante e irresistível. Mas também levantam uma bandeira: a gente quer ver crédito e retorno chegando pra quem construiu isso lá de baixo, com MPC velha, microfone emprestado e coragem infinita. Funk não é moda passageira, é cultura viva, feita por mãos e vozes que sabem o valor de cada batida.

"Nevou" e "Reflexo" são as propostas para deixar os garot mais estilosos (Foto: Marlon Soares / Voz das Comunidades)

A estética do funk é uma afirmação de identidade. Cada look, cada corrente dourada, cada cabelo na régua ou unha decorada carrega história, atitude e presença. É sobre transformar o que a sociedade chama de “excesso” em orgulho, brilho e protagonismo.

No baile, o estilo fala alto: bermuda, óculos, camisa, top neon, tamanco, cropped, brinco grande, pochete no peito, mochila nas costas, óculos espelhado, lace impecável, dente de ouro, cílios postiços, glitter no rosto. A moda funkeira não segue tendência, ela cria.

Essa estética nasceu da quebrada e virou referência internacional. O que antes era ridicularizado agora inspira editoriais de moda, passarelas e coleções de grandes marcas. Mas muito antes de ser “cool”, o visual funkeiro sempre foi sobre existir com estilo em um mundo que tenta apagar quem vem da periferia.

No funk, a roupa é linguagem. É liberdade de corpo, é ostentação como resposta ao apagamento, é beleza preta, trans, favelada sendo celebrada. É moda com verdade, com vivência, com resistência.

Na favela, as marcas sempre foram mais do que status, são símbolos de pertença, conquista e afirmação. Vestir Lacoste, Oakley, Nike, Mizuno, Adidas, Tommy, Hering, Puma, é, muitas vezes, performar dignidade num mundo que te nega o básico. O look de marca, mesmo que comprado no camelô ou garimpado em brechó, carrega a potência de dizer: “tô na pista, tô no corre, tô no topo do meu próprio jeito”.

As marcas entraram na estética da quebrada muito antes de enxergarem valor nisso. O desejo por elas veio dos videoclipes, das novelas, dos comerciais onde a favela não estava. E o que a quebrada fez? Apropriou-se, ressignificou, estilizou. Transformou o consumo em linguagem estética, misturando original com falsificado, luxo com criatividade, criando um visual único, carregado de verdade.

Só que tem um ponto: por muito tempo, essas mesmas marcas ignoraram ou criminalizaram quem usava seus produtos na periferia. A elite usava Oakley pra fazer trilha; a favela, pra ir ao baile e era julgada por isso. Só agora, com a força cultural do funk, das redes sociais e da estética preta periférica ganhando o mundo, algumas marcas tentam dialogar, algumas ainda exploram.

A moda da favela é vanguarda, é referência global, é cultura viva. Mas é importante que, além da estética, as marcas respeitem a origem, invistam na quebrada, valorizem os artistas, os stylists, os modelos e os criadores que sempre fizeram do nada um espetáculo.

Passinho dança faz parte da cultura das favelas cariocas (Divulgação)

Os passinhos do funk são mais que dança, são linguagem corporal, identidade em movimento. Cada passo, cada quebradinha de joelho, cada giro ou descida até o chão carrega um jeito de falar sem dizer nada. É corpo livre se expressando, criando e se conectando com a batida, com a quebrada, com o mundo. No funk, quem dança não dança só por lazer, dança pra existir, pra resistir, pra se comunicar.

E o mais lindo é ver como essa dança muda de estado pra estado, mantendo a alma da cultura. No Rio de Janeiro, o passinho tem raiz no funk 130, 150 BPM, com influência do charme, do miudinho, do break. Surgiu nas comunidades, ganhou os becos, e virou febre com batalhas de passinho que viralizaram nas redes. É leveza com impacto, é “voar” com o corpo.

Em Belo Horizonte, o funk BH é marcado por batidas mais secas e graves, o famoso mandelão, e os passinhos vêm com muito mais impacto e força. São movimentos marcados, giros intensos, pernas rápidas, e uma influência do hip hop, do passinho mineiro raiz. BH transformou o funk em algo visual, potente, cinético, onde cada passo parece pancada sonora.

Já em São Paulo, o passinho se mistura com o fluxo, o funk consciente, o brega funk. Aqui, o corpo fala com ironia, malemolência, protesto. Tem o rebolado com crítica, o improviso da rua, a mistura com passinhos do TikTok, a força da quebrada traduzida em coreografia. SP bebe de todas as fontes e devolve com sotaque próprio.

O funk também pulsa forte fora do eixo RJ, SP, BH. No Nordeste, por exemplo, ele encontrou um terreno fértil de mistura, ousadia e potência. Em estados como Pernambuco, Bahia e Ceará, o funk se funde com o brega funk, o arrocha, o pagodão, criando batidas únicas que arrastam multidões. Os passinhos nordestinos vêm cheios de ginga, rebolado, improviso e muita referência da cultura local. É o corpo em festa, mas também em denúncia.

Já no Paraná, o funk chegou com tudo nas periferias de cidades como Curitiba, Londrina e Foz do Iguaçu. Os fluxos do Sul têm sua identidade própria, com letras que retratam a vivência da quebrada paranaense e batidas que mesclam o mandelão com o funk consciente. Por lá, o funk virou ferramenta de comunicação da juventude, com MCs cada vez mais ganhando espaço e usando o som como canal de expressão, crítica e pertencimento.

E em tantas outras regiões do país, como o Centro-Oeste, o Norte e o Interiorzão de tudo, o funk se espalhou como fogo em palha seca. Tocando em paredões, carros de som, festas de rua, aplicativos, escolas e até cultos, o ritmo se adapta e se afirma como linguagem do povo. Seja no calor de Manaus, nas ladeiras de Salvador ou nas vilas do DF, o funk é sempre sobre voz, corpo, comunidade.

Não importa o CEP. Onde tem favela, tem funk. Onde tem juventude querendo viver, criar, dançar e resistir, o funk se manifesta. E é isso que torna essa cultura gigante: a capacidade de ser múltipla, local e universal ao mesmo tempo.

Os passinhos são poesia de rua, resistência coreografada. E o mais bonito é saber que, apesar dos estilos diferentes, todos fazem parte de uma mesma cultura que não para de se reinventar.

CIA PONTE (S(P)R) - DIA NACIONAL DO FUNK

Celebrar o Dia do Funk é muito mais do que comemorar um ritmo, é reconhecer uma revolução popular que transformou batida em voz, dança em linguagem e periferia em potência criativa. É olhar pro passado com respeito, pro presente com orgulho e pro futuro com a certeza de que o funk não para, nunca parou.

Mesmo criminalizado, perseguido, censurado, o funk resistiu com talento, beleza, ousadia e coletividade. Nasceu onde o Estado não chegava, cresceu onde diziam que não havia cultura, e hoje é uma das expressões mais autênticas da arte brasileira no mundo.

O funk é baile, é protesto, é afeto, é grito, é moda, é corpo em movimento. É a trilha sonora de quem cria tudo a partir do pouco. É manifesto, é sobrevivência com batida. É o Brasil real rimando sua própria história com orgulho e sem pedir licença.

Funk é cultura, funk é arte, funk é patrimônio, e funk é, cada vez mais, o mundo ouvindo a favela.

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