Entre Exu e Gustavo: o álbum mais corajoso (e contraditório) de Djonga

O oitavo álbum de Djonga é, antes de tudo, um convite à escuta profunda. São doze faixas que costuram dor, superação, amor e ancestralidade em um ciclo emocional que não mascara a vulnerabilidade, pelo contrário, a celebra.

Desde a capa, o disco já se mostra íntimo: lágrimas douradas escorrem de um rosto que não é só o do artista, mas o de um homem comum, ferido e vitorioso. É a imagem de quem transformou sofrimento em discurso, de quem sabe que o sucesso também sangra. O ouro não cobre as cicatrizes; ele as acentua.

O projeto é talvez o mais pessoal e contraditório de sua discografia até aqui e por isso mesmo, o mais potente. Ele se apresenta menos como o rapper invencível e mais como o humano Gustavo. A figura mítica de “menino que queria ser Deus” agora convive com a fome de Exu, uma fome insaciável de vida, de presença, de sentido e o artista não esconde que também se assusta com essa intensidade.

Do ponto de vista lírico, Djonga mantém sua verve afiada, mas escolhe também ceder espaço ao silêncio interno, à escuta, ao sentir. A crítica social continua urgente e necessária, mas agora compartilha espaço com a confissão e o questionamento pessoal. A força vem, dessa vez, do peito aberto e não apenas do punho cerrado.

“FOME”, a faixa de abertura, já deixa claro que esse é um álbum que caminha com os orixás. O disco carrega como nunca as referências às religiões afro-brasileiras: Ogum, Xangô, Iemanjá, Oxóssi, Exu, firmando a espiritualidade como uma base que sustenta e guia, mesmo nas incertezas. Essa base se entrelaça com a ancestralidade, costurando passado e presente com firmeza.

O álbum também se destaca pela curadoria nas participações especiais. Milton Nascimento, em “Demoro a Dormir”, evoca o peso da história e o sonho interrompido. Samuel Rosa, em “Te Espero Lá”, empresta seu lirismo pop-mineiro para uma faixa que mistura melancolia e esperança. A sutileza etérea de Dora Morelenbaum, em “Ainda”, encerra o disco como um sussurro de perdão e transcendência.

Djonga também abre espaço para novas vozes promissoras, como RT Mallone, em “Ponto de Vista”, revelando seu compromisso com o presente e o futuro do rap nacional. Os já consagrados Coyote Beatz e Rapaz do Dread, parceiros de longa data, assinam a produção que reafirma Djonga como uma das vozes mais inventivas da música brasileira. A sonoridade transita com fluidez entre o clássico boom bap, batidas contemporâneas e elementos que flertam com o samba, o trap e até a MPB. É coeso sem ser repetitivo o que revela maturidade de produção.

Talvez o maior mérito deste disco seja a sua contradição consciente. Djonga expõe suas hipocrisias, seu desejo de dominar o mundo e a necessidade de cuidar do seu. É grandioso sem ser arrogante. É íntimo sem ser frágil. É um disco de transição não entre gêneros, mas entre fases de um homem que não quer mais apenas vencer, mas entender o que significa ter vencido.

Se Djonga sempre foi espelho para muitos, agora também se permite ser janela: nos convida a enxergar o mundo dele, mas também a ver o nosso com mais empatia e complexidade.

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